A primeira solenidade da Liturgia da Igreja no Tempo Comum Pós-pascal é a
da Santíssima Trindade. A festa da Trindade não faz memória de nenhum evento
particular da nossa salvação, mas nos mergulha na realidade mais profunda da
nossa identidade cristã: “Creio em um só Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e
da terra… Creio em um só Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do
Pai antes de todos os séculos… Creio no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que
procede do Pai e do Filho e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado” (cf. DS 150).
No mistério do Deus Trino – Pai Filho e Espírito – está o ponto de partida da nossa
confissão de fé, a identidade da nossa realidade pessoal e histórica santificada pelo
dom da Graça, o invólucro da nossa condição espiritual, a meta e o destino da nossa
vida em Deus. Pai, Filho e Espírito é o nome próprio do nosso único Deus, a nós
comunicado e revelado em sua Palavra Encarnada, o Filho feito homem, Jesus
Cristo Senhor Nosso.
Portanto, a Trindade não é uma questão periférica da fé cristã ou da fé da
Igreja, mas é o seu núcleo constitutivo. Basta prestar atenção nas saudações e nas
conclusões das Cartas do Apóstolo Paulo. A Igreja de Jesus não é “cristocêntrica”
(toda referendada ao Jesus histórico ou ao Cristo da fé) nem “pneumocêntrica” (toda
referendada na anarquia dos carismas e dos dons do Espírito), mas “teocêntrica”
(toda referendada ao mistério do Único ser divino compartilhado em comunhão
essencial pelas pessoas do Pai, do Filho e do Espírito), portanto Deus em sua
realidade (ou em seu “mistério”) mais íntima, participada historicamente a nós pela
Encarnação do Filho e pelo Dom do Espírito, que procedem da Fonte Primordial
(portanto, da “monarquia” = princípio único) do Pai.
Quando dizemos “Deus”, em perspectiva cristã, não estamos dizendo
“qualquer ser supremo” a quem cabe o adjetivo “deus”, mas uma realidade de
comunhão que subsiste nas relações de amor constitutivas do que chamamos Pai,
Filho e Espírito, inconfundíveis, mas inseparáveis e indivisíveis.
Fugir ou passar à margem desta questão – a questão doutrinária da Igreja por
antonomásia – é abandonar a compreensão fundamental da fé para focar apenas na
periferia dos fatos da salvação. O mistério da fé por excelência não é a Eucaristia,
nem os Sacramentos, nem a Ressurreição, nem a Ascensão nem a Redenção, nem
a Maternidade de Nossa Senhora (todos derivados e consequentes do mistério da
Encarnação do Filho Único do Pai como concretizações históricas da sua missão e
do seu envio), nem mesmo a Santificação, o Perdão dos Pecados, a Comunhão dos
Santos e a Vida Eterna (todos derivados do derramamento do Espírito enviado pelo
Pai e pelo Filho). O mistério fundante do Deus Escondido em sua intimidade eterna
e do Deus Revelado em Jesus Cristo é a própria realidade fontal da comunhão ou
da realidade comunitária das Três Divinas Pessoas que subsistem num único e
mesmo ser de Deus. “Esta é a fé que da Igreja recebemos e sinceramente
professamos, razão de nossa alegria em Cristo” (Cf. Rito do Batismo) e na qual
fomos todos batizados.
Na verdade, não fomos batizados só em nome do Pai, nem só em nome do
Filho, nem só em nome do Espírito Santo, mas “em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo”. Isto implica em que a autêntica espiritualidade do cristão diz respeito
às suas relações pessoais com cada uma das divinas Pessoas e com Deus na sua
absolutez.
A autêntica compreensão do mistério da Trindade a partir de suas fontes mais
originais (a Revelação do Novo Testamento, o Kerygma neotestamentário e a
Teologia da Igreja Antiga) oferece a síntese da experiência religiosa fundamental da
Divina Realidade como Absoluta e Pessoal, como Transcendente e Imanente, como
Salvação e como Mistério, como Fundamento e como Abismo. O desafio dos
cristãos no século XXI é relativizar as “espiritualidades genitivas” (espiritualidade
de…, espiritualidade da…) em detrimento da espiritualidade do próprio Jesus Cristo:
a inserção na comunhão trinitária do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Do contrário,
acaba-se por relativizar Aquilo que é, por natureza, Absoluto na constituição do
seguimento a Jesus. E quando Jesus fala de “Amor“ a Deus e ao próximo, Ele está
se referindo a esse Amor fontal da Comunhão Trinitária derramado em nós pelo
Espírito, que é o Amor (o que a doutrina cristã chama de “inabitação” da Trindade
em nós). Por isso, sem a experiência desse Divino Amor, jamais se conseguirá amar
verdadeiramente o próximo como Jesus “mandou”.
Daí é que nasce a indissolúvel unidade entre Espiritualidade e Teologia, entre
Experiência Religiosa e Discurso Sistemático, entre Fundamentação Bíblica e
Tematização Dogmática, entre Oração–Contemplação e Ação Evangelizadora e
Pastoral.
A Revelação do mistério de Deus através do seu Filho feito carne é o dado
cristológico que interessa mais de perto à questão da compreensão trinitária. Nela
podemos afirmar que o Deus da Criação e da Aliança, o Rei Eterno dos Séculos e
Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo manifesta-se como realidade Única na sua
Santidade e Presença, vividas na experiência religiosa e, particularmente, na
oração; revela-se também como realidade intensamente Pessoal na sua Justiça e na
sua Bondade, definitivamente confirmadas na divina auto-doação no Filho Eterno,
encarnado pela nossa Salvação, e na Graça Incriada do dom do Divino Espírito da
nossa Santificação. O homem, então, se confirma, deste modo, como a nova e mais
profunda evidência da possibilidade de comunhão com Deus: é um ser “finito”, mas,
pela Graça Incriada, “capaz do Infinito” (cf. LAVALL, o Mistério Santo. São Paulo:
Loyola, 1987, p. 238-244).
A Solenidade da Santíssima Trindade torna-se, assim, no coração do Tempo
Comum – tempo do desenvolvimento ordinário da nossa vida de fé – um necessário
convite às pessoas comprometidas na Pastoral e na Espiritualidade, na Catequética
e na Mistagogia a redimensionarem sua identidade cristã na proclamação existencial
de sua fé não no “Deus dos Filósofos” (que pode ser qualquer “coisa”) mas no Deus
de Jesus Cristo – a suprema comunhão substancial de amor que identificam Pai,
Filho e Espírito Santo num só Deus e num só Senhor.
Pe. Luciano Campos Lavall