A liturgia da Quaresma é um incessante apelo para superar o formalismo: é inútil a abstinência de alimentos se não se abstém do pecado. Toda disciplina espiritual proposta nesse tempo, da qual o jejum é uma expressão típica, não se limita a essa prática; ao contrário, alarga-se para uma ascese que procura conter, por meio da abstinência, a ferida provocada na dignidade humana. Desse modo, o homem é purificado e descontaminado dos vícios do pecado é conduzido à recuperação da sua dignidade e seu equilíbrio interno, prejudicado pelo pecado. Em suma, é conduzido à Vida Nova em Deus, fruto da Páscoa de Cristo.
A verdadeira ascese à qual nos orienta o tempo quaresmal é a “pobreza de coração” (Mt 5,3), a total disponibilidade interior ao Deus vivo, que não quer tanto a oferta de coisas senão a oferta dos nossos corações (Sl 50). A conversão esperada e desejada encontra seu maior obstáculo na autossuficiência humana: o apego desmesurado às riquezas, a orgulhosa segurança farisaica. Não o fariseu, mas o publicano é que retorna justificado porque bate no peito rezando: “Senhor, tende piedade de mim, que sou pecador” (Lc 18,12).
A Quaresma é tempo forte de empenho na caridade. Pelos prefácios I e III ouvimos a respeito da assiduidade da caridade ativa e da superação do egoísmo que nos faz abertos aos pobres. A verdadeira prática penitencial proposta na Quaresma, o profundo movimento ascético esperado é o da justiça e caridade. A verdadeira conversão a Deus é a conversão ao amor fraterno. A privação no jejum e na abstinência deve ser sentida como exigência da fé para torna-se ativamente caritativo. Sem uma atitude de justiça e caridade o jejum, em si mesmo, não tem significado, antes deve ser um sinal daquelas atitudes.
Talvez nossas liturgias possam sem mais tonalizadas da necessidade de uma relação de abertura e fraternidade, trazendo o foco para a relação, para a vivência comunitária em detrimento de uma visão intimista e reducionista que evidencia apenas o pecador e seu pecado, sua relação estrita com Deus desconsiderando sua relação intercomunitária: quem ama a Deus e não ama seu semelhante é mentiroso (1Jo 4,119). Isso pode ser feito na escolha dos cantos, na confecção das preces à luz das leituras e da realidade local, na proposição de um sentido litúrgico (comentário) segundo aquela comunidade que se reúne para celebrar sua história e vivência.
– Padre Igor Neves Passos